O cinema tem um papel fundamental na construção da memória histórica, especialmente em um país onde as feridas da ditadura militar ainda são negadas por setores que buscam reescrever o passado. Assistir a Ainda Estou Aqui (2023), longa que retrata a trajetória de Eunice Paiva, é um passo importante para resgatar essas histórias. No entanto, há outras figuras igualmente essenciais que precisam ser lembradas, como Madre Maurina Borges da Silveira. Primeira freira presa e torturada pelo regime, sua história não pode ser esquecida.
A ditadura militar (1964-1985) perseguiu não apenas militantes políticos, mas também religiosos comprometidos com causas sociais. A prisão de Madre Maurina em Ribeirão Preto, em 1969, sob a falsa acusação de envolvimento com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), demonstra como a repressão visava qualquer forma de dissidência. O objetivo não era apenas silenciar opositores, mas também disseminar o terror, mostrando que ninguém estava a salvo, nem mesmo uma religiosa dedicada ao trabalho social.
Diante dessa realidade, é fundamental resgatar sua trajetória, seja pelo documentário “Maurina, o Outono que Não Acabou”, seja por obras literárias como “A Coragem da Inocência de Madre Maurina Borges da Silveira”, escrita por seu irmão, Frei Manoel Borges da Silveira, junto com Saulo Gomes e Moacyr Castro. O livro detalha sua prisão, as torturas brutais que sofreu e seu posterior exílio no México em 1970. Como bem pontua a apresentação da obra: “A coragem e a inocência são de Madre Maurina Borges da Silveira. A covardia e a culpa são dos ditadores e seus cúmplices” (Comissão da Verdade – ALSP]
Mais do que um relato de sofrimento, a história de Madre Maurina é uma demonstração de resistência. Diferente de uma visão passiva da vítima, ela simboliza aqueles que, mesmo diante da tortura, não cederam à lógica da opressão. Seu nome deve ser lembrado ao lado de figuras como Frei Tito, também torturado pelo regime e posteriormente levado ao suicídio devido às sequelas psicológicas. Assim como Batismo de Sangue (2007) trouxe a história dos frades dominicanos, o cinema deveria ampliar a abordagem sobre religiosos perseguidos pela ditadura, incluindo Madre Maurina.
O documentário “Maurina, o Outono que Não Acabou”, dirigido por Gabriel Silva Mendeleh e produzido pela Kauzare Filmes, preenche essa lacuna ao resgatar sua trajetória. Com entrevistas de ex-presos políticos, historiadores e jornalistas, além de imagens de arquivo e reconstituições, o filme evidencia não apenas a brutalidade do regime, mas também a força de uma mulher que sobreviveu à tortura sem abrir mão de suas convicções. Seu impacto foi reconhecido internacionalmente, com prêmios no Festival Cinema Independente de Sevilha e exibições em diversos países (Memorial da Resistência)
A luta pela memória e pela verdade não se limita ao passado. Hoje, discursos autoritários tentam minimizar os crimes da ditadura, glorificando seus algozes e desqualificando suas vítimas. Manter viva a história de Madre Maurina é um ato de resistência contra o revisionismo histórico que ameaça apagar as marcas da repressão. Como demonstram estudos acadêmicos, sua trajetória transcende a narrativa individual, tornando-se símbolo da luta coletiva contra o autoritarismo.
Resgatar essas narrativas é essencial para que o outono da repressão não se repita. Como dizia frei Betto,”o que move a história não são os grandes líderes, mas a força dos que resistem”. E Madre Maurina resistiu. Sua memória deve seguir viva para que o Brasil jamais esqueça os horrores que ela e tantos outros enfrentaram.