A casta do poder, onde, salvo raras exceções, predomina os super salários, corporativismos e decisões seletivas, de acordo com a classe social, genero e cor das partes.
No Brasil, existem diversas classes e castas de poder que monopolizam os privilégios, impulsionam a desigualdade e perpetuam os seus descendentes nessa posição. E o poder judiciário é um deles, sendo um dos principais. Ministério Público, Advocacia, e principalmente a Magistratura. Onde se percebe o abismo social de forma clara e latente entre esses e a sociedade em geral, principalmente no tocante a classe trabalhadora de base.
Vivemos um teatro, onde ao se buscar socorro no poder judiciário, esperando e suplicando por justiça, o que se encontra são, como já dito, salvo raras exceções, profissionais do direito muitas das vezes bem preparados tecnicamente, porém, sem o mínimo de consciência e experiência social que os coloquem em uma posição apta a entender e se por, por exemplo, no lugar do cliente que o advogado atende, o réu que o promotor acusa, e o apenado que o juiz condena. Ou seja, a grande maioria da sociedade brasileira, que é pobre, periférica e trabalhadora.
Nos bancos das universidades de direito do país, onde é o nascedouro desses profissionais que irão assistir, processar e julgar a classe trabalhadora, durante décadas foi um local exclusivo para membros da elite brasileira. Elite não! Possuidores de riqueza material, e por consequência, ocupantes de posição de poder. Com o advento das políticas públicas implantadas pelo primeiro governo Lula (2003 a 2011) na área da educação de nível superior, principalmente no tocante ao programa PROUNI (2005), esse cenário começou a mudar. Com a implementação do programa de bolsas, o pobre e periférico também passou a ter acesso e competir, não em pé de igualdade, mas com muita luta, dividindo seu tempo, muita das vezes com os estudos e trabalho, com essa classe dominante que se perpetuava exclusivamente nessa posição.
Aqui, compartilho uma experiência pessoal, caro leitor e leitora. Como homem negro, filho de uma mãe empregada doméstica e um pai pedreiro, já com 28 anos de idade, casado, com filho pequeno, e não vislumbrando possibilidades de melhoras financeiras, a não ser pelos estudos, prestei o ENEM e consegui ingressar na faculdade de Direito graças a uma bolsa parcial do PROUNI. Iniciando os estudas na faculdade particular, o que mais me chocou foi a diferença entre a qualidade de preparo que meus colegas pertencentes as classes mais favorecidas tinham em relação a educação de base que eu havia recebido no ensino público. Matérias que por vezes me causavam surpresa e desconhecimento, esses colegas diziam que haviam aprendido nos primeiros anos do ensino básico. E como todo e bom periférico, superei tais adversidades. Mas o ponto central desse compartilhamento da minha experiência na faculdade de direito, não é só apontar esse abismo no preparo que nos leva a ficar tão distantes das universidades, e eles tão perto, mas sim a crueldade que vi da visão de mundo desses pequenos burgueses em relação a classe trabalhadora e o povo periférico.
Quando os temas das aulas eram Direito Penal ou Direito Trabalhista, a sala de aula se transformava em um circo dos horrores, com direito a espetáculos de ódio de classes, aporofobia (aversão ou rejeição a pessoas em situação de pobreza), populismo penal, racismo e fascismo velado. Com o velho e batido discurso que a solução para a super lotação carcerária é a “pena de morte”, que “bandido bom é bandido morto”, de que “se está preso, boa pessoa não é”, entre outros absurdos de uma visão simplista, sem aprofundamento na causa e principalmente sem empatia alguma. Claro, que aqueles que se levantavam contra esses discursos éramos nós, os bolsistas, que sabíamos que a maioria esmagadora dessa população carcerária e alvo daqueles discursos de ódio era o nosso povo, nossos vizinhos, nossos amigos e até nossos parentes. E diferentemente deles, tínhamos conhecimento, através da experiência de vida, das particularidades, histórias, traumas e, mas escolhas que podem levar esses indivíduos a cometerem atos delituosos. Sendo estes, por muitas das vezes, inocentes, vítimas de policiais delinquentes que simulam flagrante, e delegados mal intencionados e preconceituosos que ratificam o crime praticado pelos PM nas ruas.
Já quando a questão era sobre Direito Trabalhista, o discurso era sempre no sentido de vitimizar os “pobres dos pais empresários” que dedicam a vida e o “suor” a sua empresa e são massacrados pelas leis trabalhistas e carga tributária imposta pelo governo. Reclamando dos trabalhadores que, ao não terem seus direitos respeitados pelos “pobres empresários”, se socorrem ao judiciário para buscarem seus direitos prejudicando assim, a empresa da família. O que eles não enxergam é a exploração do trabalhador, a precariedade do trabalho muitas vezes impostas a estes, pagamentos a menor, a disparidade de armas entre o empresário e o trabalhador, entre outros fatores. Naquele momento, a luta de classes ficou nua na minha frente, e ali percebi que estamos em guerra. A cansativa e velha luta de classes.
Quando me deparava com essas cenas na universidade, o pensamento que me vinha na mente era: “Esses serão os advogados que vão atender nosso povo, os delegados que irão conduzir o inquérito de um jovem periférico e os juízes que irão julga-lo. Estamos perdidos!”. E porque, caro leitor e leitora, trago essa visão da origem e formação desses profissionais? Porque ela explica boa parte desse problema! O porquê do encarceramento em massa do povo negro e periférico. O porquê do racista branco ser liberado do flagrante na delegacia e a tipificação do seu crime ser alterado de crime de racismo (inafiançável) para injuria racial. O porquê da diferença do tratamento dado pela Policia Militar nas periferias em comparação aos bairros nobres. O porquê da absolvição de PMs envolvidos em execução do povo periférico, e condenação de pessoas detidas por furto não tipificados, amparados pelo princípio da insignificância (furto de alimento em condições e quantidades para consumo próprio). O porquê da impunidade nos crimes de ódio praticados contra a comunidade LGBTQIA+. O porquê da impunidade dos crimes de feminicídio praticado contra as mulheres pretas e periféricas. O porquê de um funcionário furtar um produto de dez reais da empresa do patrão, e isso ser considerado crime, mas o mesmo patrão “furtar” trezentos reais em direitos desse mesmo trabalhador não ser crime.
Entendem? Todo o sistema judiciário brasileiro está impregnado pela luta de classes. E como eles detém a posição de poder, a classe pobre e trabalhadora sempre estará em desvantagem, sendo julgada não com base nas leis vigentes do país, mas sim pela visão preconceituosa e classista de quem opera tais leis. Sendo flexíveis quando alguns dos seus são objetos do julgamento, e extremamente rigorosos quando se tem a frente alguém que não lhe causa o mínimo de conexão, proximidade, identificação ou empatia, ou seja, um pobre, negro ou periférico. Afinal, eles nunca estiveram nesse lugar de fome, desemprego, preconceitos e traumas. Como iriam entender e ser por no lugar? Difícil.
Hoje, a pena para um juiz que infringe as leis é se aposentar de forma compulsória com o recebimento em média de R$32.000,00 (trinta e dois mil reais) mensais. Para ser justo, a Lei Orgânica da Magistratura prevê as penas de: advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade, aposentadoria compulsória ou demissão. Mas quem aplica tais penas? Adivinhem? Juízes! Isso mesmos, seus pares. Que querem ter o mesmo tratamento, caso sejam pegos praticando quaisquer desvios de conduta. E qual o resultado disso? Aplicação de pena de aposentadoria compulsória em quase a totalidade dos casos.
Ocorrência semelhante a aplicada no caso de policiais militares delituosos, onde quase sempre suas punições são sair das ruas e trabalharem administrativamente. Nesses casos, a de se fazer uma importante observação. A benevolência concedida aos policiais que matam, praticando crimes se valendo da função pública e poder bélico fornecido pelo Estado, não é por mera bondade da corporação, ministério público ou poder judiciário. Até mesmo porque esses “praças”, em sua grande maioria, são compostos por pobres, negros e periféricos. Porém, fazem o serviço sujo da classe dominante e precisam ter a sensação de impunidade e protecionismo para que não se intimidem em praticar o controle social sobre a classe trabalhadora diante da insatisfação e protestos populares, mesmo que isso signifique transcorrer as leis vigentes.
Ou seja: “Aos amigos os favores, aos inimigos a lei!” (Maquiavel)
Frequentemente, recebo comentários de amigos e pessoas próximas, em meio a conversas informais, de que nossas leis são ruins, que precisamos reforma-las, e comentários do tipo. Até concordo, em partes! Mas costuma responder tais afirmações com a seguinte provocação: “Ruim são as leis, ou aqueles que as criam e as operam? Pois uma faca é uma faca, tanto nas mãos de um cozinheiro, quanto nas mãos de um assassino.” A lei é apenas um instrumento, que é criada e operada por pessoas com tendencias e interesses próprios. Nossa legislação é considerada como uma das mais modernas do mundo. O que esta errado não são nossas leis, mas sim a seletividade de quem as aplica e a vista grossa que fazemos como sociedade de tais descumprimentos legais. Pois a classe dominante usa a lei para legitimar suas ações de controle de classe para perpetuar seus privilégios, e ao mesmo tempo ignora de forma intencional e estratégica, os abusos praticados pelo poder público ao negligenciarem os direitos básicos previstos na constituição federal. A aplicação de lei que cobra deveres, mas não respeita direitos, não deve ser obedecida, pois tal conduta se demonstra ilegal. Como dizia o nobre jurista uruguaio Eduardo Juan Couture: “Teu dever é lutar pelo Direito. Mas seu um dia encontrar o Direito em conflito com a justiça, lute pela justiça.”
Apesar de tudo, tenho esperança! Acredito que uma das soluções para revertermos esse cenário está na ocupação desses espaços de poder por juristas com origem e experiência de vida na classe trabalhadora e periférica. Só assim poderemos ter uma justiça mais humana, empática, célere e justa!